segunda-feira, novembro 23, 2009

A estória do 24


O amor-perfeito aconteceu entre os dois.
Conheceram-se numa rua escura, à porta de uma loja já fechada.
Ambos tinham fome e não se reconheceram. Ela pintara o cabelo e já não usava lentes coloridas.
Ele mudara por completo. Outro nome, outro corte, outro fato. Outro estilo. Outra gravata.
Viveram juntos uma semana.
Ela pintou o cabelo, mudou a cor dos olhos. Ele comprou uma nova colecção de gravatas e sapatos.
Destruíram-se por completo. E ele, expulsou-a do apartamento, depois de ela lhe lavar a roupa e lhe organizar as gravatas por tons.
Ela tornou-se fria e cautelosa. Mesmo quando ele fez amor com ela fervorosamente.
Destruíram-se completamente. Ele não lhe reconheceu a cor dos olhos.
Depois, mudaram a roupa da cama e o amor-perfeito aconteceu entre os dois.
Conheceram-se numa rua escura, à porta do 24. Já estava fechada.

sexta-feira, novembro 20, 2009

Romance epistolar. Carta 19 ou 20.




Estou em barcelona, um bocado perdida. Aos soluços. Numa tasca. Bebo vinho. Sem articulação. As ruas ligam-se. E desligam-se. Sem sentido. A um ritmo incessante. Dentro dos passos. Dos músculos. Esticados ao fim do dia. Distendidos nas distâncias. Entrecortadas por rumos distintos. Porque alteram a direcção de uma mesma pessoa em todo um só dia. Pessoa-ave que persegue um rasto de milho-intuitivo. E vinho tinto, também. Esquinas imediatas. Atravessam-se no caminho do amarelo ao 'rojo'. Sem fronteiras. Sem timidez. Sem meios-tons. Identifico as ruas por onde ando. Mas estão noutros lugares. Até que acho o último grão de milho. No fim da linha da hora. (No lo hay perdido pero estoy un pouco bruta.)
Estou numa taverna, numa calle qualquer en Raval. Bebo vino. Ay una chica sola defronte. Procuro cumplicidade.
As tavernas e o vinho tinto fazem-me pensar em ti. São as casas so jogo que mais procuro. As coisas simples e tingidas de vida fazem-me sempre lembrar-te. Penso que tu vais acordar-me por inteiro. Pero no lo he perdido.
Às vezes desconfio até dos amendoins que me esperam imóveis dentro de um pires branco. Se calhar é do branco que os contrasta. Todas as cores que principiam uma morte latente. Cabrona, sempre latente. Mesmo rompendo as montanhas de núvens. São brancas. Belas porque contrastam o azul profundo em formas almofadadas.
Ahora estoy tranquilla.
A moça beijou-o, o bruto. E ficou com o bico arregalado. Ela quer inspirar-me de longe. Paredes brancas com texturas niveladas por vinho rojo. É uma taverna em que me faz falta o teu silêncio, o ardor da foqueira, os teus olhos no meio das dunas reservadas numa negligência salutar. O mar e o sonho. Mas esse pressegue-me. Aos soluços. Abro as narinas para deixar correr o fumo negro. Abrirei ainda mais para folgar em ver-te. E os teus beijos. Amor e temperamento.
(Foto de Andreia Lira)

quinta-feira, outubro 29, 2009

The Cinematic Dr. Poem


Sofia Freire - contos
Dennis González -Composição/ trompete
Aaron González - contrabaixo
Stefan González - bateria
featuring Rodrigo Amado - saxofone

Não percam, ao vivo, os Fragmentos do Viajante...!

8 de Novembro, domingo, às 22 horas, na Fábrica do Braço de Prata

segunda-feira, outubro 19, 2009

Otherness


I arrive at a homeland. Still feeling like a stranger among my people.

This is the town where I departed from. My home. But I’m not the same, now.

For an instant, I can observe the place where I was born with the eyes of a tourist, a traveler. Someone distant.

I take a picture. I never thought this street was so pretty. Yet, I miss the place I last came from. My clothes and my bag conserve its odor. There is a memory that doesn't want to be forgotten.
... ...
The word "saudade" was also born here. And it had never made so much sense as it does now: the moment I became someone else.

terça-feira, julho 14, 2009

Sim. A casa era azul. E de dentro as janelas azuis recortadas por quatro quadrados guardavam memórias infantis. Lembro-me delas, sem precisar de olhar a foto que tens, inclinada na cómoda. Não fiz coisas que prometi, sem deixar de te amar. E talvez o que faço por ti hoje seja mais que uma promessa.
A casa era azul. E eu não tenho morada para te escrever. Uma carta ficou guardada no teu peito. Para sempre sobre a tua ferida. Todas as letras da existência hão-de estar nela, selada. Assim como estava a tua boca, aliviada do mundo. Quando as palavras se tornaram absolutamente abstractas.



Fotografia por Jorge Cruz

sexta-feira, maio 22, 2009

O trabalho não rende e só o esforço não paga a vida.
A noite ladra-me Lisboa
Sem feira, sem fio de ouro, sem guitarra.
Durmo com o relógio colado aos ouvidos. Como será possível sair disto sem a morte?